Violência traumatiza motoristas de ônibus no RJ, e 500 estão afastados para tratamento psicológico

Motorista de ônibus na região metropolitana do Rio de Janeiro por 23 anos, Damião Ferreira da Silva atualmente toma quatro calmantes por dia, dois remédios para a pressão, um manipulado para o cérebro e um tarja preta para transtorno do pânico. Além disso, faz acompanhamento psiquiátrico e psicológico há dez anos, desde que deixou a função devido a uma série de episódios traumáticos.

Ele é um dos 500 rodoviários do estado em tratamento psicológico permanente, sem condições de retornar às suas atividades profissionais, segundo dados do Sintronac (Sindicato dos Rodoviários de Niterói a Arraial do Cabo).

A violência urbana é o principal fator de afastamento de trabalhadores do setor. De abril de 2023 a novembro de 2024, foram feitos 229 pedidos de demissão, dos quais 80% foram motivados por episódios violentos.

É o caso de Damião, que hoje tem 67 anos. “Eu já não dormia à noite, gaguejava muito, ficava muito trêmulo. Até que um dia parei para pegar um passageiro no ponto e apaguei. Quando acordei, já estava no hospital. Tive um AVC. Fiquei internado por 14 dias, e o médico me disse que eu não tinha mais condições de voltar ao trabalho, porque eu transportava vidas”, disse ele.

Um dos casos mais marcantes, segundo ele, ocorreu num domingo, na localidade conhecida como Quinta do Dom Ricardo, em São Gonçalo, na Grande Rio. Três homens armados entraram no coletivo que Damião dirigia, com 30 passageiros, e anunciaram um assalto. Quando estavam saindo do veículo, um dos criminosos lhe deu um tiro.

“Ele falou para mim: ‘aí, piloto, vamos ver se você tem o santo forte’, e atirou em mim. Eu me joguei por cima do extintor, a bala bateu no para-brisa e estilhaçou o teto.”

“Fiquei numa situação muito desesperadora, meu corpo tremia todo, e fiquei sem condições até de conseguir dirigir o ônibus. Desde então eu comecei a ter umas tremedeiras. Hoje sou tão trêmulo que tenho dificuldade até de assinar meu nome”, disse ele, que foi diagnosticado com doença de Parkinson.

“Essa violência fere o próprio princípio constitucional do direito dos cidadãos ao transporte público, fragiliza ainda mais as empresas, compromete o desempenho dos rodoviários e torna a todos nós reféns”, afirma Rubens dos Santos Oliveira, presidente do Sintronac.

Na capital fluminense, cerca de 250 motoristas abandonaram a profissão após situações de crimes e agressões nos transportes coletivos de 2022 a 2024. Neste ano, foram mais de 140 desligamentos, segundo dados do Sindicato dos Rodoviários do Rio de Janeiro.

“Tem certas linhas de ônibus hoje que têm dificuldade, por parte das empresas, de colocar motoristas. Eles se recusam a trabalhar na linha ou, se já estão trabalhando, passam por episódio de violência e querem sair”, afirmou Paulo Valente, porta-voz do sindicato Rio Ônibus, que representa as empresas.

Ainda segundo o sindicato, nos últimos 12 meses, 230 motoristas foram afastados do trabalho por conta de problemas psicológicos causados pelo medo da violência. “Alguns ficam com síndrome do pânico, outros têm crise de ansiedade. Esse número é alarmante”, disse Valente.

O porta-voz do Rio Ônibus afirmou ainda que as empresas procuram remanejar os motoristas de linhas, e disponibilizam psicólogos que fazem o acompanhamento desses profissionais.

Afastado temporariamente de suas funções, Italo Ferraz, 53, levou três coronhadas no rosto e quase ficou cego após um assalto na porta da garagem de uma empresa de ônibus, em São Gonçalo, em dezembro do ano passado.

Outro episódio já havia afetado Italo quando o ônibus que dirigia foi assaltado, em 2022. “O assaltante pegou os pertences de todo mundo e, depois, fez dois disparos: um quase pegou na minha cabeça, mas atingiu o teto do ônibus. Voltei a trabalhar cinco dias depois, normalmente, para a mesma linha”, contou.

“É uma coisa que eu quero esquecer. Estou tratando com neuropsiquiatra, psicóloga e remédios controlados, porque eu fico tremendo.”.

Uma nova perícia agendada para dezembro deve definir se o rodoviário poderá voltar às atividades ou se terá de se afastar de forma permanente. “Gosto da minha profissão, mas não queria voltar por conta de todo esse trauma que eu sofri. Apesar disso, preciso dessa renda e a única coisa que eu sei fazer na minha vida é dirigir ônibus”, disse ele, que atua há mais de 20 anos na função.

De acordo com o porta-voz do Rio Ônibus, além de assaltos, o que mais acontece hoje é o sequestro de ônibus por facções criminosas. “Nessas ações, criminosos fecham o ônibus, mandam todo mundo descer e o motorista atravessar a rua para servir de barricada. Em casos extremos, ainda incendeiam o ônibus”, disse Valente.

Só neste ano, 112 veículos foram sequestrados e usados como barricadas. Oito deles foram incendiados. O prejuízo chega a R$ 22 milhões, segundo o sindicato.

Em outubro, diversos episódios de ataques a ônibus ocorreram, num período de 15 dias, na região da Muzema, na zona oeste do Rio. Cerca de 200 mil pessoas que utilizam diariamente as sete linhas que passam no local foram afetadas. A área é alvo de disputa entre criminosos.

“Esses episódios são recorrentes, e acontecem sempre nas mesmas localidades e nas mesmas situações, quando há operação. A gente vê já, felizmente, alguma movimentação, como o caso da escolta dos ônibus na Muzema. Queremos que seja estendido para todas as regiões em que esse tipo de ocorrência vem acontecendo”, disse o porta-voz do sindicato.

Desde o último dia 30, as linhas de ônibus que circulam pela estrada do Itanhangá passaram a ter o itinerário sob escolta policial. A via fica entre as comunidades da Muzema, Tijuquinha e Rio das Pedras.

Policial federal há 28 anos e especialista em segurança pública, Sandro Araújo afirma que a presença da polícia pode reduzir riscos em locais mais críticos, mas é preciso também investir em estratégias de inteligência e tecnologia.

“O mundo inteiro investe em comunicação e mobilidade para as forças de emergência, seja de polícia ou saúde, porque o que faz diferença nesses atendimentos é a velocidade com o qual você atinge esse lugar. O policial pode até ter boa vontade, mas não consegue chegar em lugar nenhum, porque não existe um plano de prevenção”, disse o policial.

A Polícia Militar disse, em nota, que os roubos a coletivos são monitorados “com uma atenção especial” pelos comandantes das unidades operacionais, que fazem contatos contínuos com representantes das empresas de ônibus.

A corporação afirmou ainda que trabalha de forma conjunta com a Polícia Civil para identificar e prender os envolvidos em ataques a ônibus durante ações criminosas praticadas no estado.

Ainda segundo a PM, as vias expressas da capital, como a av. Brasil e as linhas Vermelha e Amarela, contam com policiamento de equipes do Batalhão de Policiamento em Vias Expressas, 24 horas por dia.

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