Antes de ser apreendido numa tentativa de roubo, em Madureira, na Zona Norte, no dia 11 de novembro, Pedro (nome fictício) havia feito três publicações no Instagram. Em uma delas, aparece de roupão branco e cordões de ouro, curtindo, de uma piscina, a vista do mar de Ipanema, do outro lado da cidade. Na legenda, escolheu uma frase curta: “Bom, novo e rico”. O local se repete em um carrossel de cinco fotos, mas, ao invés do traje de banho, ele estava com uma camisa de time estampada com “157”, referência ao artigo penal que o levou, pela segunda vez, ao sistema socioeducativo. Abaixo do número, lê-se “Eqp Ódio”, grupo ligado ao Comando Vermelho, que tem chamado atenção de policiais.
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Pedro tem 16 anos, mora no Complexo da Penha e, há cerca de seis meses, teria fundado, junto a amigos, a Equipe do Ódio. Segundo a Polícia Civil, os integrantes dela são “puxadores de roubo”, principalmente de veículos. A maioria deles é adolescente ou novato no tráfico, o que justificaria essa atuação mais arriscada nas ruas. Os delitos acontecem em diferentes regiões da cidade, em especial nos bairros de Madureira, Quintino, Cascadura, Brás de Pina e Vila da Penha, na Zona Norte, e na Barra da Tijuca, Zona Oeste.
O rapaz também era conhecido por ser um dos seguranças de Edgar Alves de Andrade, o Doca, do alto escalão da facção. No entanto, após uma atitude que desagradou o chefe, ele foi rebaixado de função. O desentendimento aconteceu pouco antes da apreensão em Madureira. Nas redes sociais, a quem diga que, naquele dia de novembro, ele havia decidido roubar um carro de luxo para tentar recuperar o posto, mas policiais acreditam que o crime era apenas parte do “expediente”.
Fila para roubar
O roubo, na verdade, foi um arrastão na Avenida Ernani Cardoso, entre Madureira e Cascadura. Ao menos três carros foram roubados por Pedro e outros integrantes da Equipe do Ódio. Agentes do 9º BPM (Rocha Miranda) foram acionados para a ocorrência e conseguiram apreender o adolescente na companhia de um colega, também menor de idade. Segundo a PM, os meninos estavam armados com duas pistolas, seis carregadores, 92 munições e um cinto de guarnição, e foram encontrados com oito celulares, duas carteiras e uma bolsa. Um dos carros recuperados foi um Tiggo 8, avaliado em R$ 200 mil.
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De acordo com a polícia, o aumento de roubo de carros e motos é observado desde 2022, ano que coincide com o início do projeto expansionista do CV. Naquele ano, 25.198 veículos foram roubados em todo estado, como revelam dados do Instituto de Segurança Pública (ISP). Agora, somente de janeiro a outubro, já foram 24.654.
O destino de grande parte dos roubos, conforme investigações, é a comunidade Nova Holanda, no Complexo da Maré. Nela, há depósitos de produtos roubados, escondidos em áreas de difícil acesso devido à presença de traficantes. No caso dos veículos, muitos são clonados para serem vendidos com preço similar ao de mercado, gerando mais lucro para a facção.
Os registros de roubo de carros e motos na Nova Holanda também aumentaram em comparação a anos anteriores. Na 21ª DP, responsável pelos bairros de Benfica, Bonsucesso, Higienópolis, Manguinhos, Maré e Ramos, foram registrados 553 casos, de janeiro a outubro de 2023. Este ano, no mesmo período, já são 957, um crescimento de aproximadamente 73%.
Para dar suporte à demanda dos crimes nessa comunidade, os traficantes têm segmentado funções e investido na organização. Em outubro, a polícia descobriu que existe até uma fila para roubar na Avenida Brasil, uma das vias principais da capital. A situação foi revelada durante depoimento de um rapaz de 18 anos, preso em flagrante pelo crime.
Na delegacia, ele contou que costumava apenas frequentar o baile da comunidade junto a um primo, mas que havia sido convidado por um traficante a participar de um roubo por Olaria e Ramos. Aquela foi a primeira vez que cometia o crime. Antes de sair da Nova Holanda, acompanhado de mais dois homens, recebeu uma arma de airsoft e uma pistola. A meta do trio era roubar uma motocicleta.
Em depoimento, ele contou que os assaltantes só recebem dinheiro dos traficantes a partir de duas motos roubadas, e que o pagamento é referente a apenas uma delas. Ao ser questionado sobre como planejavam os roubos, ele citou a fila: “somente iriam sair se desse tempo, pois havia outros assaltantes na fila, esperando a vez deles para sair e roubar”. Para cometer o crime é necessário “esperar a vez chegar”.
Tráfico como armadilha
Quatro dias após a apreensão de Pedro, seu irmão Leo (nome fictício), de 17 anos, também foi pego pela polícia. Referência na equipe de roubadores do CV, ele divide a rotina nas ruas com o cargo de “puxador de guerra”. Na ocasião, ele foi apreendido junto a mais três colegas, de 14, 18 e 19 anos.
Os quatro estavam em um Polo Branco, na Avenida Brasil, quando foram abordados por policiais do 14º BPM (Bangu). Houve troca de tiros e, na tentativa de escaparem, os meninos abandonaram o carro e correram para a comunidade do Batan, dominada pela Amigos dos Amigos (ADA). Encurralados em um dos acessos da favela, eles foram apreendidos pelos agentes, que, posteriormente, descobriram que o grupo estava se mobilizando para atacar o Jardim Bangu/Catiri, área de milícia.
As ordens para os roubos são dadas no próprio Complexo da Penha, considerado o “QG” do Comando Vermelho. É por lá que a polícia acredita estar o Doca, um dos “chefões”, e Juan Breno Malta Ramos Rodrigues, o BMW, apontado como um dos responsáveis pela expansão da facção por Jacarepaguá. Os roubos, inclusive, são peça-chave para o crescimento do grupo na Zona Oeste, já que o dinheiro da venda dos veículos é usado para financiar a compra de armas e equipamentos usados nas invasões.
Além das fotos de ostentação, é comum os meninos faccionados fazerem publicações em homenagens aos colegas que morreram ou estão privados de liberdade. Geralmente, há músicas de saudade, como gospel ou aquelas referentes à própria criminalidade. Em especial, citam uma do MC Cabelinho, de trecho: “Saudade dos amigo que se foi, que nunca mais vai voltar/ Tô cheio de ódio, eu juro, a favela de luto / Já tá fazendo falta pra comunidade / Não dá pra acreditar que isso foi de verdade”.
Entre a Equipe do Ódio, a reverência mais comum é feita a Paulo Sérgio Ferreira Pereira, o Surfista da Penha. Ele morreu, aos 19 anos, ao sair com dois amigos para um assalto, em maio do ano passado. A investigação sobre a morte ainda não foi concluída, mas testemunhas apontam que ele teria sido baleado por seguranças de uma loja, que perseguiram, de carro, o trio.
Para a pesquisadora Juliana Vinuto, professora do departamento de Sociologia da UFF e coordenadora do Núcleo de Estudos Guerreiro Ramos (Negra-UFF), a palavra “ódio” como nome da equipe é sintomática:
— Esse sentimento pode ser pensado como resultado de um contexto de subalternidade e frustração, potencializado pelo desrespeito, arbitrariedade e desproporcionalidade vividos nos encontros com instituições do Estado, como a polícia. Uma abordagem policial desrespeitosa ou uma audiência insultuosa com um juiz pode mexer com a autoestima de um adolescente. Ao mesmo tempo, o tráfico pode fazer ele se sentir respeitado e com poder. Se nossos adolescentes “são audaciosos” e “têm disposição”, como fomentar essas potencialidades em benefício deles próprios? Para mim, o Estado deveria financiar projetos e programas para esta população, ao invés de investir em instituições de controle, que provam, há décadas, serem seletivas e violentas.
Fontes da polícia comentam que a apreensão de adolescentes é rotina. Eles são maioria nas ruas, cometendo crimes de maior exposição, como roubo e furto. Um levantamento do Departamento Geral de Ações Sócio Educativas aponta que, somente em novembro, 79 deles entraram no sistema.
— Os adolescentes preenchem uma mão de obra para o tráfico que não precisa ser qualificada. Os mais velhos conseguem entrar facilmente na cabeça dos mais novos, garantindo um monte de coisa, seja dinheiro, poder, proteção. Se beneficiam do espírito de aventura, da coragem e da disposição que é bem comum nessa fase da vida — disse um policial.
Ao contrário dos adolescentes citados, traficantes “mais valiosos” do CV conseguem ficar à margem das prisões. O Doca, por exemplo, foi preso uma única vez, entre 2007 e 2016. O BMW nunca foi pego. Juntos, os dois somam mais de 31 mandados de prisão, segundo consulta no Conselho Nacional de Justiça.
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